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  • Por: Márcio Botelho
  • Publicado em: 19 de abril de 2021

Uma lição argentina

O escritor argentino Jorge Luiz Borges se notabilizou por ser um dos maiores contistas do século XX. Seus relatos breves, impactantes e cheios de conexões com outros textos fizeram dele um dos mais influentes nomes da literatura mundial nos últimos cem anos.

Borges também era conhecido por sua grande humildade, pois nunca se gabou de ter criado nenhuma grande história ou ideia. Segundo o escritor argentino, criatividade é uma coisa muito rara. Desde o início da humanidade contamos basicamente as mesmas histórias, sendo assim o que ele fazia não era novidade. Seu diferencial era dar um arranjo diferente aquilo que já era conhecido por todos.

Contos como A morte e a Bussola, Pierre Menard, autor do Quixote, There are more things e O Sul, dialogam diretamente com diversos outros textos, criando um intrincado labirinto de referências que é fascinante, não pela invenção de novos temas, mas sim pela elaboração de padrões únicos e inesperados.

Será que a forma como a criatividade era abordada por Borges pode ajudar em como encaramos a inovação nos jogos de tabuleiro?

Criatividade e jogos de tabuleiro

A questão da criatividade, ou da falta dela, assombra muitas discussões envolvendo jogos de tabuleiro. Quando um novo título aparece é muito comum vermos comparações em relação as mecânicas do jogo, seu tema e até mesmo ao formato e tipo dos componentes.

Afirmar que um título peca por “falta de criatividade” é uma acusação grave, pois no geral acreditamos que a originalidade é fundamental e demonstra o talento e a genialidade da equipe envolvida no desenvolvimento de um título.

Mas será que é fácil inovar?

Inovação

Já parou para pensar o quão difícil é criar algo genuinamente novo? Não estou falando de alguma coisa inspirada em um elemento preexistente, mas sim de uma absoluta e completa novidade.

Quando falamos de mecânicas, e vamos nos ater a elas por enquanto, as inovações aparecem poucas vezes a cada década. Quando essa novidade surge é comum que se torne muito popular, chamando a atenção de todos, ganhando prêmios e se tornando uma tendência.

Roll and write e deck building são mecânicas que exemplificam isso: quando surgiram rapidamente se tornaram as “mecânicas da moda”, presentes em uma série de jogos e garantindo boas vendas devido ao fato de se destacarem do que era feito até então.

Algo semelhante acontece com os temas. Em algum momento certas temáticas acabam dominado o mercado. Isso se explica por conta de algum filme, série de TV ou livro que esteja na moda: vikings, piratas, zumbis, dinossauros, viagens espaciais, magia e mais um sem fim de temas já tiveram seu momento de popularidade nos board games.

Com o passar do tempo, e depois de uma saturação quase que natural, as antigas “novidades” continuam presentes no mercado de jogos, reunindo fãs ao seu redor e gerando interesse não apenas daqueles interessados com aquilo que está na moda.

Copiando a criatividade

Nosso fascínio pela originalidade está ligado a uma certa maneira de se olhar para a origem. É muito difundida em nossa cultura a ideia de que a origem, ou aquilo que está mais próximo do original, possua um valor intrínseco superior.

Esse juízo de valor está presente, por exemplo, quando vemos afirmações como “os filmes originais são melhores que os remakes” ou qualquer variante que coloque o original ou raiz, melhor que o atual ou nutella.

Essa fascinação pela origem, que mistura nostalgia e um senso de pureza dos tempos de outrora, esconde um certo problema. Pois, sejamos francos, nem sempre a versão original é a melhor aplicação de uma ideia ou produto.

(Não acredita em mim? Tente rever algum desenho animado ou série de TV da sua infância e me diga se você conseguiu assistir mais do que 5 episódios sem sentir vergonha alheia)

De volta ao Rio da Prata

Já que a novidade é tão rara, e que nem sempre a ideia original é a melhor aplicação possível de um conceito, acredito que é um bom momento de nos voltarmos para a perspectiva apresentada por Jorge Luis Borges.

O que torna um jogo um clássico, como El Grande, Carcassonne ou Dixit, não é o fato de que El Grande consolidou a mecânica de controle de área, Carcassonne criou o nome meeple para designar os pequenos bonequinhos de madeira e Dixit sistematizou os jogos que misturam criatividade e narrativa. Eles são clássicos por serem agradáveis de se jogar, desafiadores e por influenciarem os jogos que vieram depois deles.

Jogos mais recentes também trazem inovações e combinações de elementos diferentes, o que prova que a criatividade sempre irá existir. Inovações podem envolver componentes como a pasta de registro de missões de ISS Vanguard; novas interações mecânicas, como a junção da trilha de pontos/navegação e a geração de recursos de Cooper Island; ou novos temas como Watergate que aborda ama disputa política entre jornalistas e integrantes do governo.

Mas nem sempre a inovação é o que faz com que um jogo se destaque. Terraforming Mars, Hansa Teutônica e Clãs da Caledônia, não trouxeram nenhuma inovação significativa, porém se destacaram por fazer uma aplicação criativa e altamente eficiente de elementos que já existiam em jogos que os antecederam.

Ao fim e ao cabo, lembre-se que a inovação pode ser um predicado de um jogo, mas que ela por si só não garante a qualidade desse produto.

Márcio Botelho

Raça: Humano. Alinhamento: caótico e bom. Classes: Historiador 6, Crítico literário 4 e Nerd 10. Essa postagem não contém dicas de futuro lançamento da MeepleBR. É sério gente. Não estamos dando nenhum spoiler de lançamento para o segundo semestre de 2021.

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