Jogos e narrativas
Um dos finalistas do Edital Ligadas na Meeple, o jogo Rios e Mar me trouxe uma reflexão importante: a narrativa como elemento importante na estruturação de um jogo de tabuleiro moderno.
Quando pensamos em jogos analógicos de grande sucesso comercial, títulos como Dungeons & Dragons, Magic: the Gathering e Yu-Gi-Oh! estão muito ligados às suas temáticas, e chamam a atenção em certa medida devido às narrativas que apresentam para as jogadoras que decidem se aventurar por aqueles universos.
Entretanto, quando olhamos para os jogos de tabuleiro modernos, parece que as narrativas nem sempre estiveram em alta: clássicos como Catan, Carcassone e até mesmo El Grande sempre tiveram muito mais um pano de fundo do que uma narrativa sendo apresentada. O argumento geral é de que, para termos um bom jogo, o que realmente importa são as regras.
Essa centralidade das mecânicas na experiência das jogadoras ainda se faz presente no imaginário de muita gente que joga, porém é inegável que nos últimos quatro anos, em especial após o lançamento de Gloomhaven, vemos um aumento significativo da importância da narrativa para a composição de uma experiência de jogo satisfatória: quero participar de uma partida desafiadora, que me faça pensar, mas que também me apresente um universo com uma história interativa, interessante e rica.
Em Rios e Mar estamos diante desse tipo de proposta.
Rios e mar – o jogo
Criado por Talita Rhein, Rios e Mar é um jogo cooperativo sobre a jornada de uma aldeia do povo Pataxó. A sua missão é aumentar o número de membros da aldeia, obter recursos, explorar regiões interessantes e seguir em sua jornada através dos rios em direção ao mar.
Os Pataxós atualmente se concentram na região sul do estado da Bahia, sendo um povo que faz parte do tronco linguístico macro-jê. Seu histórico na região remonta ao século XVI e antes, apontando para um dado da realidade que por vezes pode passar despercebido: os povos originários são anteriores ao Brasil.
Essa percepção é fundamental para entender a importância de Rios e Mar e da forma como ele trabalha o passado, posto que a opção da autora foi retratar um período anterior à chegada dos colonizadores portugueses ao litoral do que viria a ser o Brasil. Uma escolha ousada e que aponta para as possibilidades narrativas que o passado histórico apresenta.
As regras do jogo
Durante uma partida de Rios e Mar as jogadoras terão de lidar com dois tipos de complicações que poderão prejudicar seu deslocamento da aldeia em direção ao mar: os eventos e os desafios.
Os eventos são situações que podem ser prejudiciais, como uma inundação ou um período de estiagem, mas também existem aqueles positivos, tais como a possibilidade de encontrar um local sagrado. Esses eventos trazem certo grau de aleatoriedade à experiência, fazendo com que cada partida tenha características próprias.
Já os desafios, como o nome indica, servem para testar as capacidades da sua aldeia e dos aprendizes que você recrutou. Aprendizes são membros da aldeia que possuem habilidades especiais e podem interagir com os desafios e com os recursos que você acumular.
É interessante notar que os recursos também se conectam ao modo de vida dos povos originários. Dentre eles estão disponíveis, por exemplo, frutos da Mata Atlântica, peixes e determinados tipos de madeira.
O jogo é totalmente cooperativo e apresenta como mecânicas principais a gestão de mão, os contratos e a construção de rotas.
Quem vai gostar de Rios e Mar?
Rios e Mar é um prato cheio para quem gosta de História.
Como a palavra “história” possui um sentido amplo, é bom deixar claro aquilo de que estou falando: quem gosta de História enquanto sinônimo da ciência histórica, desenvolvida nas universidades e ensinada nas salas de aula, vai achar o jogo um barato, pois nele estamos diante de uma série de referências à História dos povos originários e ao seu comportamento no devir histórico.
De todo modo, se falamos em “história” no sentido de uma série de acontecimentos narrados, também é possível dizer que Rios e Mar foi feito para você: acompanhar a trajetória daquela aldeia, seus dramas e suas superações vai atrair aquela jogadora que está atrás de vivenciar uma narrativa, mas que está um pouco cansada das ambientações de fantasia com inspiração na Idade Média europeia.
A autora
Talita Rhein é autora do recém-lançado jogo de cartas Dogo Dash. Paulistana morando em Berlim, apaixonada por jogos de mesa e digitais.