Entrevista – Jaime Daniel Rodriguez Cancela
Se você joga RPG e acompanha as discussões nas redes sociais, muito provavelmente já ouviu falar de Jaime Daniel Rodríguez Cancela.
O Jaime – vamos abreviar para facilitar – é uma figura bastante ativa na cena de jogos analógicos da cidade de São Paulo e além. Narrador de RPG, já trabalhou em lojas e editoras, deu oficinas sobre RPG, apresentou a cultura lúdica em diversos espaços, é o principal organizador do Dia Nacional do RPG e um verdadeiro poço de sabedoria.
Nesta entrevista, falamos sobre a comunidade de jogadores, diferenças e semelhanças entre as tribos dos jogos analógicos, o dia nacional do hobby, o uso de plataformas digitais e as técnicas secretas do RPG.
Jaime, você poderia se apresentar para quem ainda não te conhece?
Jaime Daniel, experiente jogador/narrador/demonstrador/divulgador de RPG e jogos de tabuleiro, realizo oficinas e encontros de divulgação de jogos analógicos com o objetivo de divulgar e estimular sua prática como hábito social, cultural e educativo.
Como se inciou o seu contato com os jogos analógicos (RPG, card games e board games)?
RPGs, foi no começo dos anos 1990. Eu jogava videogame e, por causa de Shadowrun e a linha Phantasy Star, acabei me interessando pelo “tabletop RPG”. Descobri Shadowrun da Ediouro, as Aventuras Fantásticas da Marques Saraiva e, depois, AD&D da Abril. A partir daí, nunca mais parei! Comecei a jogar com um grupo bem jovem na Forbidden Planet, na avenida Ibirapuera em São Paulo. Volta e meia algum dos garotos comprava um RPG novo e me emprestava para que eu aprendesse e mestrasse, para minha sorte…
Já os jogos de tabuleiro, a história é mais antiga. Houve uma época em que o Círculo do Livro vendia jogos da Grow e, junto com um ou outro livro, minha mãe comprava algum pra mim. Lembro-me de Ladrões no Bosque, Espião e um jogo do Tom e Jerry que era uma versão do Snake and Ladders. Aí meu pai me ensinou xadrez, dama, dominó etc., e comecei a me interessar por jogos diferentes. Amigos ganhavam e me emprestavam jogos para que eu ensinasse para eles as regras. Caiu nas minhas mãos um protótipo fantástico que um pessoal fez para um jogo de tabuleiro chamado JogFutebol, da Copa de 1982. Era estilo wargame e tinha cartas de TODOS os jogadores das 24 seleções daquele ano (aparentemente o protótipo nunca avançou, porque nunca achei um registro sobre ele). Durante muito tempo, usei aqueles futebolistas para jogar um Escrete que eu tinha. Joguei tabuleiro durante muitos anos, mas dei uma parada quando comecei com os RPGs, voltando a ser mais ativo nesse meio a partir de 2009, mais ou menos. E, por mais irônico que pareça, nunca tive uma versão padrão do War nem do Banco Imobiliário…
A partir de que momento os jogos passaram a ser uma parte do seu trabalho?
Em 2003 eu fui convidado a fazer parte da LVDVS CVLTVRALIS, uma associação que promovia o uso de jogos na educação. Entrei para fazer parte do projeto RPG no CEU, em conjunto com a Prefeitura de São Paulo. Durante o projeto, de setembro de 2003 a dezembro de 2004, visitamos as 23 unidades dos CEUs (Centros Educacionais Unificados) inaugurados nesse período, com a colaboração de um grupo de 200 voluntários. Fazíamos duas visitas mensais em cada unidade, levando oito narradores treinados para a atividade. Não tenho os números de 2003, mas em 2004 tivemos 3 mil pessoas jogando RPG com a gente nas bibliotecas dos CEUs.
Eu entrei na LVDVS como coordenador de equipe, passei para coordenador de projeto e terminei o ano como presidente da entidade, promovendo, entre outras atividades, o III e IV Simpósios RPG e Educação e outras iniciativas. Nunca mais parei de fazer eventos e oficinas.
Em 2009, passei a trabalhar, agora profissionalmente, para a Devir, a D3 Store, Terramedia, Terra Magic e FunBox, além de um trabalho temporário na Ludens Spirit. Continuei fazendo diversas oficinas para escolas e para a prefeitura de São Paulo, sendo inclusive oficineiro cadastrado na Secretaria Municipal de Cultura.
Você já fez vários eventos de apresentação de jogos para pessoas que não conhecem o hobby. Qual foi a experiência mais marcante pela qual você já passou nesses eventos?
Minhas oficinas são tão diversificadas que as experiências são sempre diferentes, mas, recentemente, a Oficina Jogos do Mundo que fiz no SESC Itaquera teve um impacto muito grande, porque tive a oportunidade de apresentar jogos tanto para crianças que não têm acesso fácil a esse tipo de coisa, como ao pessoal da terceira idade que normalmente só conhece carteado ou dominó. Uma senhora a quem apresentei Mancala me deixou emocionado ao dizer que faria um para ela quando chegasse em casa para jogar com a família, assim como algumas meninas que queriam conhecer todos os jogos. Por outro lado, a oficina Joga Comigo no SESC Vila Mariana me marcou porque tive o prazer de apresentar jogos a diversas famílias que pouco conheciam os jogos modernos. Tenho certeza de que ali conquistei mais alguns adeptos para o hobby!
E, mais recentemente ainda, minha primeira oficina de RPG aberta e on-line, o Laboratório de Vilões, também me deixou muito feliz! Enfim, cada oficina me deixou lembranças… e amizades!
Em sua opinião, além da diversão, quais os benefícios que os jogos analógicos podem trazer para os jogadores?
Jogos permitem interatividade, conhecer pessoas, criar laços. Eu gosto bastante de games, mas, para mim, nada supera a sensação boa de encontrar pessoas, saber as novidades, contar piadas, fazer o intervalo da pizza ou comida japonesa e me divertir. Para não mencionar o estímulo mental que os jogos analógicos proporcionam. Eu conheci minha esposa em uma mesa de RPG. Com poucas exceções, todas as minhas amizades vieram direta ou indiretamente da minha expe riência com jogos. E eu conheci MUITA gente boa. Eu poderia conhecer essas pessoas colecionando selos, fazendo jardinagem ou viajando? Talvez! Mas a experiência de criar laços, colecionar memórias e me divertir funciona perfeitamente pra mim.
Jaime, eu vou contar uma história pra você: me lembro de ter te conhecido em uma oficina para narradores de RPG na Casa das Rosas, oferecida em meados dos anos 2000. Aquilo me ajudou muito a ser um narrador melhor e me dedicar mais ao hobby. Há quanto tempo você faz essas oficinas? Você sabe dizer quantas oficinas já realizou?
Eu lembro da Oficina da Casa das Rosas. Foi um ponto alto da minha experiência…
A primeira oficina, eu a fiz em novembro de 2003. De lá pra cá foi muita coisa. Quando minha filha Raíssa nasceu, tive de parar durante uns anos. Eu não tenho registro preciso de quantas oficinas realizei. Tenho anotado todos os locais aonde fui, mas em vários lugares foram quatro ou oito oficinas, já que o curso de narradores normalmente acontece em quatro oficinas separadas. Comecei a anotar direitinho em 2018. De lá pra cá eu realizei trinta oficinas, inclusive três virtuais. Sem contar eventos, demonstrações, palestras ou mesas redondas. De 2003 para cá, devo ter realizado umas cem oficinas diferentes. Se for contar encontros, atividades em eventos ou escolas, deve chegar fácil, fácil ao dobro disso.
Subitamente, estou me sentindo velho… rs!
Qual o público que vai às oficinas e como tem sido o feedback dessa galera?
A oficina de narradores de RPG é muito diversificada. Antes eu acreditava que somente atrairia gente inexperiente, mas aos poucos foi aparecendo muito jogador veterano inseguro para mestrar e narradores até experientes, mas que queriam dar uma renovada na abordagem. Mais recentemente comecei a elaborar oficinas para narradores experientes com temas específicos.
As oficinas de jogos de tabuleiro vão depender muito do local onde acontecerem, mas, em geral, tento atrair o público iniciante.
Em ambos os casos o feedback tem sido tão positivo que sempre eu termino uma já fico ansioso para a próxima. Então, por enquanto, está funcionando.
Ainda no tema RPG, você é o principal organizador do Dia Nacional do RPG. Você poderia falar um pouco da origem do evento e se já existem planos para a próxima edição?
A pandemia me pegou desprevenido. Eu estava animado em março, porque senti que o Dia Nacional já estava consolidado o suficiente para tentarmos ampliar a ideia, mas, com a questão do distanciamento social, os eventos tiveram de se adaptar. Infelizmente, a iniciativa depende da boa vontade de nós, organizadores, e as dificuldades são grandes. Mas eu tive a felicidade de conhecer grandes parceiros em todo o Brasil que abraçaram a ideia, então eu sei que conseguiremos realizá-lo mais uma vez em 2021, com as adaptações que se mostrarem necessárias. Posso afirmar que o DNRPG vai abraçar também a realidade do RPG on-line.
Devido ao distanciamento social trazido pela pandemia, muitos RPGistas e jogadores de board game têm recorrido a plataformas on-line para manter suas mesas de jogo. Você acredita que o jogo on-line pode substituir as mesas presenciais?
Nunca. Será apenas mais uma forma de jogar, uma variação do hábito. Temos jogos de tabuleiro com 5 mil anos de idade. O ato de contar histórias data dos tempos das cavernas. De lá pra cá, tanta coisa aconteceu, e o ser humano sempre buscou uma forma de jogar. Apareceram as arenas, os estádios, teatro, cinema, TV, internet… E mesmo assim as pessoas ainda se reúnem para jogar RPG ou tabuleiro. Por quê?
Porque somos animais sociais. Temos necessidade de diversão e contato humano, de alguma forma. E os jogos proporcionam isso. Não sou um estudioso do assunto nem acadêmico, mas acredito, baseado em minha humilde experiência e análise pessoal, que os jogos podem trazer benefícios de tantas formas diferentes que nos próximos anos veremos cada vez mais a utilização dessas estratégias lúdicas em nosso dia a dia.
Por fim, sabemos que você é um dos maiores guardiões das técnicas secretas do RPG. Você poderia apresentá-las para nossos leitores?
As Técnicas Secretas do RPG são um segredo, oras!
Ok, já fiz a piada, vamos falar sério agora.
Eu estava procurando assuntos para novas oficinas quando encontrei um site de divulgação sobre um livro que orientava narradores de RPG. Um dos vídeos dizia que o livro ensinaria “técnicas secretas dos melhores mestres de RPG” ou coisa assim. Eu entendo que é uma estratégia de marketing, mas achei engraçado. Eu comentei sarcasticamente minha “descoberta” e a brincadeira rolou solta em minhas publicações nas redes sociais.
Mas a verdade é que me incomoda apresentar o RPG como algo meio misterioso que exige o conhecimento de técnicas obscuras e segredos escondidos. O RPG é uma coisa natural, disponível a quem queira aprender. Vender a ideia de que é preciso ter acesso a segredos é exatamente o oposto do que faço!
Você mencionou a oficina da Casa das Rosas. Lembro que um amigo meu, depois dessa oficina, me disse que ele nunca tinha pensado em como é fácil mestrar RPG! Por fim, para quem está lendo isto, gostaria de terminar dizendo o seguinte:
Boa parte das oficinas que faço são em escolas e locais públicos. Cerca de 25 por cento de minhas atividades têm alguma remuneração, em geral proporcionada por escolas particulares, o SESC ou empresas. Mesmo as empresas de jogos colaboram de forma tímida com o meu trabalho, algo pelo que sou grato, porque a maioria nem reconhece o que faço. Mas eu persevero, porque quero que todos tenham a oportunidade de fazer amizades e criar lembranças boas por meio dos jogos, como aconteceu comigo. Meu primeiro grupo de RPG na Forbidden Planet, os Metagamers, as pessoas com quem trabalhei e aquelas que atendi, os Piratas e Pistoleiros (meu grupo de amigos de todas as horas), o amor da minha vida, Maria do Carmo Zanini. Se os jogos me propiciaram a chance de conhecer tanta gente, imagina o que eles podem fazer por vocês?
E aí, querem jogar algo??