Entrevista – Maria do Carmo Zanini
Maria do Carmo Zanini, ou como é mais conhecida MC Zanini, é um nome querido por muitos fãs de RPG e de board games, em especial aqueles que ficam atentos aos créditos que constam no final dos manuais e na ficha técnica dos livros.
Uma das principais tradutoras de um mercado ainda marcado por franco machismo, MC Zanini possuí em seu currículo trabalhos de grande destaque como a tradução do aclamado Clãs da Caledônia, de romances da série Duna e de uma grande quantidade RPG’s de sucesso no Brasil.
Nessa entrevista abordamos aspectos relativos ao trabalho de tradução, às características do mercado de jogos no Brasil e a representatividade das mulheres nos meios nerds.
Maria do Carmo, você poderia se apresentar para quem ainda não te conhece?
Faz uns vinte anos que a galera me chama de MC Zanini. Não tenho nada a ver com hip-hop, mas acho a alcunha bacana, daí incentivo o uso. Sou bacharel em Ciências Biológicas, mas nunca exerci a profissão. Virei tradutora inglês <-> português em 2000, começando com RPG, mas já fiz um pouco de tudo nessa área: de manuais técnicos de engenharia civil a poesia norte-americana contemporânea. Entre os dois extremos, alguma não ficção, uma boa dose de ficção especulativa, histórias em quadrinhos e jogos analógicos.
Em 2007, fui revisora interna na Martins Fontes – Selo Martins, uma grande escola de produção editorial na prática. De 2008 a 2014, fui editora da linha Novo Mundo das Trevas na Devir Livraria. Também editei O Um Anel RPG e otras cositas más. Entre 2012 e 2014, entrei na seara dos jogos de tabuleiro e, pelo jeito, finquei o pé ali. (Além de traduzir, também redijo do zero manuais de jogos criados por brasileiros.)
Hoje me considero “profissional do texto”. Traduzo, redijo, preparo, volta e meia produzo. Assino como Maria do Carmo Zanini nas editoras tradicionais, mas no universo lúdico sou MC Zanini @ Zombie Dodo Studio.
Como se iniciou seu contato com a assim chamada “cultura nerd”?
Eu tinha sete aninhos e assistia a Jornada nas estrelas. Não fazia ideia do que significava “magnificação máxima, senhor Sulu”, mas vibrava quando a Enterprise entrava em “dobra 5”.
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Na real, eu mergulhei de cabeça nessa cultura nerd só depois que vim do interior para a capital de São Paulo em 1989. Virei trekker de carteirinha, comecei a ler quadrinhos Vertigo… Aí, lá por volta de 1996 ou 1997, conheci um pessoal na faculdade que me apresentou Magic: the Gathering e Dungeons & Dragons. Pronto, fui fisgada para a vida toda.
De que forma você começou a trabalhar como tradutora?
Eu frequentava a saudosa Casa Amarela da loja Terramédia, que fazia parte do mesmo grupo que a Devir Livraria. Ali jogávamos RPG ou o que aparecesse toda sexta à noite. Fiz amizade com o Carlos Eduardo Lourenço (o Caco), que era uma espécie de gerente de eventos da Devir. Eu costumava apontar para ele os errinhos que eu encontrava nas traduções da editora. Aí, na virada do milênio, quando eu larguei a pós-graduação e estava desesperada atrás de trabalho, ele me apresentou para o Douglas Quinta Reis, sócio e editor-chefe da Devir. A versão simplificada e romântica da história é que repeti as críticas que eu fazia ao trabalho da editora e Douglas me perguntou se eu achava que faria melhor. Respondi que sim. Ele me deu um suplemento de Lobisomem: o Apocalipse para traduzir e disse que, se eu me saísse bem, conversaríamos.
Eu me saí… mais ou menos. Mas Douglas viu algum potencial no meu trabalho. Conversamos. Estudei as críticas que recebi dele e da preparadora de texto e procurei melhorar. Vivo disso até hoje e ainda me esforço para melhorar a cada novo trabalho.
Pode falar um pouco sobre como é o seu processo de tradução? Você segue um procedimento padrão ou cada tradução acontece de forma diferente?
Há pequenas diferenças no meu modus operandi de acordo com o gênero textual com que estou trabalhando, mas, em geral, sou consistente. Tento me familiarizar com o material primeiro, faço alguma pesquisa sobre a autora e sua recepção crítica, leio trechos em voz alta para sacar a cadência das frases, presto atenção a possíveis idiossincrasias de estilo e fico imaginando como reproduzi-las no nosso idioma. Aí começo de fato a traduzir, entremeando tudo com uma boa dose de pequisa. Antigamente, eu fazia a coisa em até três etapas: saía traduzindo o que não gerava muita dúvida, largando palavras, expressões ou frases inteiras no idioma original, e deixava a consulta aos dicionários para uma segunda “passada”. Aí terminava com uma leitura cuidadosa, acertando o estilo e corrigindo lapsos, como se eu preparasse meu próprio texto. Hoje em dia, com uma experiência acumulada de vinte anos, eu faço tudo em duas etapas.
Agora, no caso de RPG e jogos de tabuleiro, o procedimento muda sensivelmente. Ainda me familiarizo com o material, mas também preparo o arquivo para que possa ser usado num programa CAT, porque esses jogos exigem absoluta consistência na padronização da terminologia. Quando o prazo permite, levanto todos os termos de jogo relevantes e preparo uma lista de padronização com as traduções preliminares. Submeto essa lista aos editores e obtenho a aprovação deles. Só aí começo a traduzir no CAT, usando a lista como glossário.
Existe alguma tradução da qual você sente maior orgulho ou um carinho especial?
Fora do nicho de jogos, eu gosto muito do que fiz com algumas obras de Rebecca Solnit. Traduzi três publicações da autora, uma das quais já publicada (A História do caminhar, Martins, 2016). Estou ansiosa pelo lançamento das minhas traduções para A field guide to getting lost e Cinderella Liberator.
Entre RPG e jogos de tabuleiro, meu carinho especial vai para Changeling: os Perdidos (Devir), O Um Anel RPG (Devir), Castelo Falkenstein (Retropunk; esse me rendeu um Goblin de Ouro em 2019), 7o Mar (New Order), Fields of Green (Flick), Kitchen Rush (Flick) e Clãs da Caledônia (MeepleBR), não necessariamente nessa ordem.
Em sua opinião, quais os grandes desafios para o trabalho de uma tradutora de jogos no mercado brasileiro?
O maior desafio provavelmente é “furar a panelinha”. Parece pejorativo, mas não é. As editoras costumam ser projetos de amor tocados entre amigos, e acho totalmente compreensível que as pessoas envolvidas queiram trabalhar apenas com gente na qual já confiam. Entrar nesses círculos pode ser complicado.
O segundo desafio relevante, a meu ver, é adequar-se à realidade do mercado de jogos, que ainda é de nicho. Em comparação com o mercado editorial de livros didáticos, por exemplo, o ramo dos jogos analógicos consegue pagar bem menos às profissionais do texto. É preciso saber negociar preços para chegar a um valor satisfatório que a editora tenha como pagar.
Qual conselho você daria para quem tem vontade de trabalhar como tradutor ou tradutora na área de jogos?
Faça muitos contatos nessa área, cumpra prazos, entregue um trabalho de qualidade, tenha muita paciência para lidar com as editoras. Acima de tudo, não invista todas as suas forças numa coisa só: diversifique-se.
Mudando um pouco de assunto, vemos o crescimento da presença feminina nos meios do RPG, board game e de fãs de ficção fantástica em geral. Você acha que estamos vendo um crescimento real ou apenas uma maior visibilidade de mulheres que já estavam presentes nesses meios?
Eu sempre tenho receio de fazer afirmações sem me basear em dados estatísticos. Mas, numa avaliação meramente qualitativa do que tenho visto nos últimos vinte anos, acho que as mulheres geeks sempre estiveram aí, talvez em números menores no passado, mas presentes de todo modo. Visualmente, parece que a proporção dos gêneros nos eventos geeks está mudando na direção de uma maior diversidade. Provavelmente é reflexo de mudanças na sociedade como um todo, mas também acredito que tenha muito a ver com a popularização da nerdice e o trabalho de formiguinha de vários grupos que se esforçam para criar ambientes menos tóxicos para as pessoas que não se conformam com a “norma”.
Em sua opinião, como o machismo e a misoginia podem ser combatidos entre essas comunidades?
Eita. Pois é, acho que não há uma resposta simples para isso porque machismo e misoginia podem se manifestar em graus variados, e o contexto diz muito sobre como devemos proceder.
Há casos em que o sujeito também é vítima do machismo sistêmico e está reproduzindo um comportamento que ninguém ainda se deu ao trabalho de explicar para ele que é inadequado. Nesse caso, dá para conversar com o cara, apontar o problema, indicar os conceitos que ele precisa rever e as mudanças de atitude necessárias. Tem gente que ouve e aprende.
Mas tem gente que não. E há aqueles que já são misóginos a tal ponto que parece não haver mais volta. Esses, só nos resta excluí-los do nosso convívio.
Editoras podem ajudar incorporando diversidade nas ilustrações de seus jogos, deixando de exaltar temas que apelam à masculinidade tóxica, redigindo manuais numa linguagem que contemple outras identidades de gênero. Organizadoras de eventos podem garantir explicitamente que atitudes preconceituosas não serão toleradas, podem treinar a equipe para lidar com possíveis problemas por meio de apoio à pessoa oprimida e do isolamento do opressor. E por aí vai.
Pessoalmente, você já passou por alguma situação de trabalho em que poderia dizer que recebeu um tratamento negativo devido ao fato de ser mulher?
Ah, sim. Logo depois de deixar a Devir, tive uma experiência ruim com dois game designers iniciantes. Eu apontava problemas e fazia sugestões e era ignorada. Aí um homem apontava o mesmo problema ou fazia a mesmíssima sugestão, e era como se os dois tivessem uma epifania. Em determinado momento, eu me vi obrigada a defender veementemente uma opinião e tive de ouvir o clássico “você está descontrolada”. Saí do projeto e vida que segue.
Mais tarde, soube por outras vias que algumas coisas que esta “descontrolada” aqui havia discutido veementemente foram incorporadas ao projeto… provavelmente porque um outro homem mandou.
Duro mesmo foi ouvir uma mulher que não fazia ideia do que ocorria nos bastidores defender esse projeto em público como algo que respeitava a diversidade de gêneros etc. Acontece. De novo, vida que segue.
Uma última pergunta, você pode contar para a gente se está trabalhando em algum projeto nesse momento?
Estou trabalhando em várias coisas bacanérrimas, mas os contratos de confidencialidade não me dão muita margem de manobra. He, he, he. Vamos testar os limites: tenho traduzido HQs para a Panini, via Mythos, e quem conhece o meu trabalho ficará absolutamente surpresa com um desses títulos. Acabei de traduzir uma publicação de D&D para a Galápagos e estou trabalhando em outra no momento. Continuo na lida com Falkenstein da Retropunk. Também entreguei há pouco um clássico da literatura infantil de língua inglesa para a Martins Fontes – Martins. Voltei a trabalhar com a MeepleBR e tive o prazer de traduzir um baita jogo de tabuleiro outro dia aí (wink-wink, nudge-nudge). Sigo sendo a redatora fiel dos manuais dos jogos de Gustavo Barreto, publicados pela Devir, Funbox e Precisamente, e mês passado comecei a colaborar num projeto secreto da Bucaneiros.