Entrevista – Rennan Gonçalves
Figura carimbada nos grupos de desenvolvedores de jogos de São Paulo, Rennan é um sujeito que chama a atenção no meio dos board games: um homem negro, com um black power imponente e largo sorriso no rosto. Uma imagem bem distante daquela que nos acostumamos a ver nos eventos dedicados aos jogos de tabuleiro modernos.
Rennan é um dos novos designers que vai publicar pela MeepleBR. Grafito, seu jogo de estreia, está em processo de desenvolvimento e será apresentado na Spiel.digital, ao lado de outros títulos nacionais da editora como Luna Maris e Paper Dungeons.
Nessa entrevista falamos da proposta de Grafito e de suas etapas de desenvolvimento. Além disso, tratamos da questão da representatividade nos jogos de tabuleiro e de futuros projetos do autor.
Seja bem vindo ao blog da MeepleBR. Como já é tradição aqui, poderia contar pra gente quem é o Rennan Gonçalves?
Desde já quero agradecer e dizer que a quebrada está em festa. Bom, o Rennan é um ativista negro que também foi mais um garoto negro que tinha o sonho, que carrega uma dicotomia de ser o mais palpável e o mais impossível, de ser jogador de futebol, porém o destino acabou me reservando outras coisas, tenho o que muitos chamam de multitalentos: sou professor de música e de História no Estado de São Paulo, tenho uma esposa maravilhosa que sempre me apoia e que me ama incondicionalmente, (Karol eu te amo).
De forma sucinta esse é o Rennan: negro, sonhador, professor, amado e criativo.
Como se iniciou seu interesse pela criação de jogos?
Minha infância foi repleta de diversão, brincadeiras nas ruas, mas em casa minha mãe sempre participou das brincadeiras. As férias eram recheadas de muito videogame (quando eu tinha) e banco imobiliário.
Minha mãe, a pessoa mais criativa de todas, sempre com novos projetos artesanais, que pela nossa condição era de tirar o fôlego, essa criatividade desabrochou em mim na faculdade, quando em uma das matérias de práticas de ensino, tive que desenvolver um jogo sobre a África no século XV. Como todo historiador, fiz uma pesquisa histórica sobre a África e o universo dos jogos de tabuleiro.
Catan, Ticket to ride e Puerto Rico foram os jogos que explodiram minha mente, um universo inteiro distante da minha realidade, mas tão divertido, eu tinha que participar, dessa forma eu entrei no mundo dos BGs.
Sei que a pergunta é quando tive interesse em criar jogos, e eu respondo … foi nesse momento, pois na primeira semana dentro do hobby eu visitei a loja Pittas Board game, perguntei ao Daniel Pitta e ao Alejandro, “é normal alguém que acabou de entrar no hobby querer desenvolver jogos”? A resposta positiva juntamente com palavras de incentivo desses grandes amigos, me fizeram chegar até aqui.
Após o anúncio de que a MeepleBR vai publicar Grafito. recebemos algumas perguntas sobre o jogo. Poderia apresentá-lo para os leitores?
Certamente. Grafito é um jogo que ressalta a arte urbana negra do grafite. Nele somos grafiteiros de várias regiões brasileiras e vamos competir durante um final de semana para fazer um grande painel. As mecânicas que englobam o jogo são, rondeis, alocação de trabalhadores, gerenciamento de recurso e pegar e entregar.
Durante o jogo vamos girar os rondeis que representam discos de vinil, pois historicamente os eventos da cultura hip-hop continham Djs que enquanto riscavam os discos nas picapes, sincronizavam suas batidas ao som das latas de sprays.
Ao girar os discos o objetivo é fazer com que as bases coloridas, que estão distribuídas e em 8 partes dentro de cada rondel, se encontrem. Isso nos permite pegar o spray que está em cima do disco. Após conseguirmos todos as tintas necessárias, vamos fazer uma parte do painel, o que vai nos garantir pontos.
Além disso, alguns grafites contém um ou mais dos quatro elementos do Hip-Hop em sua composição (Grafite, Dj, B-Boy ou B-Girl e Rap). Ao obter os 4 elementos ligados ao seu grafite, isso vai potencializar sua pontuação e pode ser o diferencial para ganhar a partida.
Como foi o começo do projeto? Você partiu das mecânicas ou o tema veio primeiro?
O Grafito surgiu em uma busca de uma nova mecânica para outro jogo, o Supremos. Me deparei com o sistema dos discos coloridos e logo que olhei para os quatro discos, minha mente ferveu e percebi que poderia usar essa dinâmica em outro jogo.
Desse momento em diante comecei a buscar a temática que fizesse sentido pra mim. Meus jogos não me completavam, não me representavam muito menos traziam algo da minha vida ou cultura, era quase como um limbo. Então olhei ao meu redor enquanto ia dar aula, e vi não só um, mas 6 grafites nos muros nas ruas e nas paredes da escola e foi ali que decidi que esse seria o tema.
Pensei comigo mesmo: “os discos são os rondeis e vamos grafitar nas favelas para deixá-las cada vez mais bonitas”.
Minha pesquisa no mercado nacional e internacional revelou que esse tema não tinha sido explorado o que corroborou minha escolha temática.
Alguns game designers que entrevistamos, como Michael Alves e Alexander Pfister, ressaltaram a importância dos playtests. Como a fase de testes impactou no desenvolvimento de Grafito?
Eu costumo dizer que ninguém faz um jogo sozinho, todos os playtesters colaboram com o projeto. Sendo assim, o Grafito carrega meu nome, mas ele é da comunidade do Boardgame, todos nós juntos fizemos o jogo ficar maduro para ser publicado por uma editora de grande nome no mercado nacional e internacional.
Minha intenção sempre foi fazer um jogo pesado, e consegui isso através da ajuda dos playtests, passando por uma onda de alterações de custos, tabuleiros, habilidade e até mesmo a história que embasava o jogo. Hoje digo que essa versão não era Eurogame, mas sim Afrogame, pois continham e contém alguns conceitos que em outro momento posso explicar com mais detalhes.
Como se deu o contato com a editora? Foram sugeridas alterações antes de o contrato ser assinado ou o jogo já estava finalizado?
Na resposta acima não disse, mas minha intenção sempre foi publicar pela MeepleBR.
Sempre que pude, deixei isso claro através de publicações e marcações da editora em fotos do Instagram, mensagens diretas, entre outros, sempre mostrando que o jogo era um diferencial no mercado.
Foi durante um evento do Board Game São Paulo que o Márcio sentou na mesa do protótipo e disse, “esse eu já conheço, vamos jogar”. Pessoal, ele usava a camisa de MeepleBR. Jogamos em dois e foi um massacre, o Márcio não viu o que lhe atingiu, fiquei até com receio de que ele pudesse achar que o jogo estava quebrado, porém ele assumiu que adorou o jogo.
Dali em diante continuamos a conversa e uma sugestão foi feita, a de deixar o jogo mais leve, mas com a mecânica central intacta, algo que remetesse ao nível de estratégia e fluidez de um belo jogo chamado Azul.
O desafio foi lançado e eu aceitei. Em 3 meses trabalhei e retrabalhei, testei e retestei. Quando apresentei a nova versão a resposta foi positiva e assinamos o contrato, porém isso não quer dizer que o trabalho acabou.
Atualmente estamos trabalhando nas interações do mural, pois queremos que ele seja mais interativo, com elementos que permitam que o jogo seja diferente em todas a experiencia e que o torne uma opção maravilhosa para sua coleção.
Recentemente você fundou o selo New Player Studios. Qual a proposta dessa iniciativa?
A New Players Studios surgiu a pouco tempo nas redes sociais, porém já faz parte da minha vida, desde quando eu cantava Rap e meu nome era New Player (Novo Jogador). Trazer essa continuação para o Boards confirma minha relação direta em criar e me envolver nas minhas paixões.
Hoje a proposta da New, é trazer o protagonismo negro, a representatividade negra, o empoderamento negro e da mulher, entre outros temas que dão visibilidade a povos, gêneros e culturas menosprezadas.
Com esse escopo ético e moral, definimos muito bem nosso lugar no mercado e qual nossa maior preocupação em lançar jogos que nos fazem evoluir e incluir, além de fazer com que pessoas se vejam nos jogos, não simplesmente como um coadjuvante, mas como heróis de suas aventuras.
A New Player é a casa do Afrogame, por que tem um espirito Afro: acolhendo todos que precisam de amor, afeto e diversão. Nosso objetivo é solidificar e popularizar a termologia Afrogame, e quando digo nós, digo pessoas com projetos incríveis como, Aline Costa, do Turno Extra, Sanderson Virgolino, da Casa do goblin, Valter Bispo, desenvolvedor do Quilombolas e Roda de samba, Davi Monteiro, desenvolvedor do Alafia, Andreza Farias, designer da Casa do goblin, Talita Rhein, desenvolvedora do Dogo Dash, Danilo Dias, desenvolvedor do Kimera, entre tantos outros. Pessoas negras que estão no hobby, que procuram fazer a diferença trazendo inclusão e invertendo papéis de poderes. A New Player tem isso como base de seus projetos.
A questão da representatividade negra vem se tornando cada vez mais importante na nossa sociedade. Como os jogos de tabuleiro modernso podem contribuir com isso?
Primeiro, muitos precisam entender que representatividade não é a mesma coisa que protagonismo. Trazer uma pessoa negra, mas ainda em uma posição de inferioridade, não tem efeito positivo. Precisamos colocar os negros e negras em papéis de poder, onde a auto suficiência da persona seja evidenciada.
Jogos que falam da religiosidade, por exemplo são um problema, pois em diversos jogos vamos a igreja. Imagino se algum jogo trouxer o terreiro como local de culto ou simplesmente como local de ação, será que isso vai se tornar algo aceitável?
Afinal essa representatividade religiosa é negra. Podemos fazer um culto para Odin e não para Ogun? Esse dilema da representatividade é complexo, porém o que os jogos podem fazer para começar é repensar a maneira que retratam os negros, os períodos históricos e extinguir os estereótipos culturais. Só isso não resolve, mas já seria um bom começo.
Voce pode nos contar em quais outros projetos está envolvido nesse momento?
Claro. Hoje a New Player tem entorno de 10 projetos em desenvolvimento, alguns já podemos destacar e divulgar:
Black Power – Um Afrogame que valoriza o movimento afro nos EUA entre as décadas de 1950 e 1970. Após Marsha Hunt, uma importante atriz, cantora, modelo e ativista afro americana, sofrer um boicote de uma revista famosa, na qual ela seria capa, mas por ter um Black Power, um símbolo da resistência e empoderamento da beleza negra, foi tirada da capa. O jogo parte desse fato histórico e leva os participantes a assumirem o papel de mulheres como Angela Davis, Nina Simone, Kathleen Cleaver e da própria Marsha. O objetivo é ganhar pontos de empoderamento arrumando nosso Black de forma individual, mas sempre nos unindo nos momentos de crise.
Pipas Pow – Em pleno domingo, foi marcado um campeonato de pipas. E como em qualquer bom campeonato, vencer é o mais importante. Em Pipas Pow, vamos cortar e aparar o máximo de pipas, das cores e formas possíveis, tudo isso para ter a maior pontuação no final do jogo. Mas cuidado, se o vento estiver muito forte você pode enroscar seu pipa em uma árvore e isso não é bom! Empinar pipa nunca foi tão diverto. Pipas Pow também é um Afrogame!
1890: O plano nacional de viação – O primeiro jogo de uma linha chamado 18xx que pode chegar a ser publicado no Brasil por um brasileiro. Durante o jogo seremos investidores, comprando e vendendo ações das companhias que estão interessadas em investir nas linhas férreas do Brasil. O mercado de ações será constantemente alterado, pois reage as nossas interações com o próprio mercado, além do desenvolvimento ou não, das companhias. Essas por sua vez, vão comprar trens, construir rotas, coletar receitas e pagar ou não dividendos aos investidores. Tais decisões primordiais serão tomadas pelos seus respectivos presidentes, ou seja, o jogador que tiver maior porcentagem da companhia em questão. A melhor administração e manipulação do mercado de ações definirá o vencedor.
Muito obrigado pela entrevista, Rennan. Gostaria de deixar um recado final para os game designers que estão em começo de carreira?
Eu que agradeço a oportunidade e espero que possamos repetir.
Bom pessoal, o que posso dizer é… façam e vivam jogos! As pessoas querem te ver e se ver nas experiências, o sentimento somado a mecânica pode trazer o resultado de uma publicação tão sonhada, e claro, pensem fora da caixa! Precisamos de inovação e espaço pra isso.
Muito obrigado e “tamo junto quebrada”.