Entrevista – JogaMana
Por muito tempo vista como algo masculino, a cultura geek está cada vez mais marcada pela presença de mulheres em filmes, séries de TV, videogames e, como era de se esperar, jogos de tabuleiro modernos.
Essa participação feminina é fruto da luta incessante de mulheres, como as representantes do coletivo Joga Mana, que trabalham para construir espaços lúdicos acolhedores para mulheres e que tenham a tolerância e o respeito a diversidade como sua base.
Como consta no manifesto de fundação do grupo: “Ao inaugurarmos a JogaMana, nós, jogadoras interessadas em exercer nosso hobby, tomamos às mãos o trabalho de design daquilo que, inevitavelmente, está em jogo na assimetria notável entre mulheres e homens na sociedade como um todo. Até que seja possível compartilharmos dos espaços mistos de diversão, de exercício da cultura geek – o que exige que esses espaços se questionem e se transformem, para que sejam realmente proveitosos a todo mundo – construímos nossos próprios meios de acessar seus benefícios sem negociar o que é nosso por direito.”
Nessa entrevista conversamos sobre as origens do Joga Mana, suas ações para a promoção dos jogos, a luta antirracista e muito mais.
Como já é tradição no blog da MeepleBR, vocês poderiam dizer para os leitores e leitoras quem são as integrantes do JogaMana?
Somos em cinco mulheres de diferentes trajetórias e formações. As primeiras integrantes-fundadoras foram a Adrilhama e a Paula Bassi. Adrilhama é tradutora, gateira e eurogamer. A Paula trabalha na área de comunicação, gosta de eurogames e odeia jogos de blefe. Amanda Alexandrini é empresária, sócia da editora Precisamente, adora literatura, idiomas, devoradora de filmes e séries e claro, boardgames. Bacolou é antropóloga, dançadora e vive questionando o que parece normal. Nanda é especialista em risotos, ama explicar jogos e vive expandindo autoconhecimento para as pessoas.
De onde veio a ideia do JogaMana? Como essa ideia ganhou corpo?
A ideia veio de uma dissidência em um grupo misto sobre Board Games. Isso é muito comum, pois esses grupos dificilmente proporcionam um ambiente acolhedor às mulheres. Existe sempre aquela piadinha machista, aquele comentário indesejado, e as vozes femininas acabam por ser suprimidas. A JogaMana surgiu não apenas para trazer mais mulheres para o hobby, mas também para criar um ambiente acolhedor e disseminar iniciativas e ideias que contribuam para a equidade de gênero dentro e fora do hobby.
Vocês organizam diversos eventos presenciais, sempre com uma boa participação e aumentando a cada encontro. Qual o público dos eventos da JogaMana?
O público que vai aos nossos eventos é muito especial, somos suspeitas para falar. Mas em linha geral são mulheres de todas as idades: temos mamães, tias, amigas, namoradas, irmãs e crianças. Embora haja mulheres das mais variadas profissões, percebemos que há uma frequência grande de professoras de idiomas e tradutoras. Nosso público tem níveis muito diferentes de experiência em boardgames. Tem mulheres que vão só para acompanhar e acabam jogando. Tem as que vão para poder ter chance de jogar com as amigas. Tem as fãs de euro, de ameritrash, de family, de party. Tem todos os gostos.
Nesses encontros, o que mais chamou a atenção de vocês em comparação com outros eventos?
O acolhimento e o companheirismo são as principais características que sentimos em nossos encontros. É uma alegria muito grande vermos um grupo de mulheres reunidas para se divertir com sororidade e empatia umas com as outras. Cada participante da JogaMana se sente parte de uma família boardgamer e isso fica muito evidente. Um ponto importante é o acolhimento das crianças, que possibilita a real participação das mães, e outra questão que torna o ambiente mais leve e tranquilo é a ausência de assédio. Também buscamos promover debates e reflexões sobre temas que nos são sensíveis através de roda de conversa com convidadas, o que dificilmente vemos em outros eventos.
Com o advento da pandemia, e por conseguinte das restrições às aglomerações, a JogaMana parece estar mais focada nas redes sociais. Quais os desafios dessa transição?
O primeiro desafio que apareceu foi o de oferecermos mais conteúdo de qualidade nas redes enquanto estávamos elaborando o que era viver em Pandemia. Passada essa fase de adaptação e cuidado das nossas vidas pessoais, e com a impossibilidade de fazermos encontros presenciais, começamos a refletir sobre nossa produção de conteúdo. É muito caro para nós que falemos mais sobre questões para além dos jogos em si. Queremos falar sobre a luta antirracista, sobre como fazer o hobby ser menos machista, sobre como ecoar mais as vozes das mulheres de diferentes raças, classes e trajetórias. O que acabou sendo nosso mais novo desafio: movimentar mais o mundo dos boardgames com temas que por vezes são negligenciados e esquecidos na maioria dos canais que falam sobre isso. Não à toa, criamos a Tile Antirracista e temos feito outros projetos também muito especiais. Além disso, voltamos a fazer nossos eventos, só que agora de forma online e mais focado nas mulheres que estão no nosso grupo do whatsapp. No fim das contas, estes desafios estão nos fazendo criar mais coisas que nos inspiram e tem sido muito bom.
Você diria que a cultura geek/nerd, em especial quando pensamos nos board games, ainda reproduz estereótipos preconceituosos em relação às mulheres?
Com certeza! Esses estereótipos vão desde ilustrações de guerreiras objetificadas e seminuas, até piadinhas que colocam as mulheres em posições de outsiders. Existem jogos de tabuleiro que nem se preocupam em trazer a representação feminina entre seus personagens e isso justamente reflete a ideia de que as mulheres não fazem parte deste universo. Algo muito parecido acontece em quadrinhos, no cinema, em séries. Isso está mudando e é excelente ver a ideia da equidade de gênero se tornar mais naturalizada aos poucos. Mas ainda temos um caminho muito longo a ser trilhado. Com o intuito de divulgar as mulheres que existem no mundo dos jogos de tabuleiro e quebrar um pouco a ideia de que somos alheias ao hobby, lançamos toda quarta-feira um quadro no instagram que se chama “Mulheres nos Jogos”, no qual celebramos as desenvolvedoras de jogos, ilustradoras, produtoras de conteúdo e outras mulheres que estão ligadas aos jogos.
Ainda nesse âmbito, me chamou a atenção que vocês tenham adentrado nas discussões sobre as tensões entre paquera e assédio na comunidade dos board games. Esse tema ainda é delicado para praticantes do hobby?
Sim, várias jogadoras já enfrentaram situações desconfortáveis em eventos porque alguns homens não conseguem visualizar onde termina a paquera e começa o assédio. Muitos veem uma gentileza como um sinal verde para avanços que na real são indesejados. Frequentemente, o assédio vem de forma sutil nos eventos, de modo que a pessoa assediada não encontra acolhimento quando relata o que aconteceu na mesa de jogos, é mão na perna debaixo da mesa, é aquela encoxada segurando pela cintura para passar atrás, e também há o assédio moral – qualquer mulher que tenha tentado explicar jogos para homens em eventos sabe do que estamos falando. Há homens, por sua vez, que parecem que não sabem ouvir. Muitos dizem que estamos fazendo drama ao apontar situações de machismo, ao mesmo tempo em que se sentem extremamente ofendidos com qualquer rejeição.
Não ter o interesse sexual correspondido precisa ser uma coisa “ok”, cotidiana. Não é uma humilhação, mas parece ser entendido assim quando o cara já introjetou a ideia de que o direito de escolha da mulher é menor do que o dele.
Uma coisa que acontece toda hora é receber mensagens puxando assunto aleatoriamente no inbox e no whatsapp: “oi, te vi lá no grupo de jogos” – sem que tenha surgido qualquer conexão direta. Cara, isso é um tanto quanto stalker! Flertar é algo saudável, mas muitos homens confundem demonstrar interesse com reduzir a pessoa ao seu interesse. Antes de ir bater na porta de alguém, pense como seria receber mensagens privadas de um cara aleatório sem contexto algum. Seja mais interessante, parça!
O antirracismo vem ganhando cada vez mais destaque no nosso tempo. Como vocês veem a conexão entre a luta das mulheres e as questões raciais?
A luta contra as opressões é uma das premissas básicas da JogaMana e não há como falar em emancipação sem mencionar a causa antirracista, afinal, queremos um feminismo que contemple o maior número de mulheres possível para fazer sentido como uma luta. Uma mulher negra por exemplo, luta diariamente contra o machismo e o racismo, e outras opressões que vão se acumulando, caso seja pobre, mãe solo etc. – essa mulher não tem como escolher contra qual opressão vai lutar primeiro. Acontecimentos recentes destacaram a questão racial nas redes sociais, mas de nada adianta se dizer antirracista e colocar uma foto preta nas redes sem agir ou propor ações. Por isso criamos a Tile Antirracista, lugar em que decidimos ecoar as vozes de mulheres negras, no mundo dos jogos e além, com referências relacionadas à filosofia, ciências sociais, antropologia, enfim, trazer reflexões sobre o racismo estrutural, estabelecendo um paralelo com o nosso hobby.
Olhando um pouco para o futuro, quais serão os próximos passos da JogaMana?
Seguiremos produzindo conteúdo para nosso blog com resenhas (que vira e mexe aparecem na primeira página da Ludopedia), entrevistas e reflexões, e também criando mais interação e reflexão nas nossas redes. Para além disso, gostaríamos de unir ainda mais mulheres do mundo dos board games para juntas transformarmos o hobby num espaço aberto para além da diversão, visando à reflexão e à promoção de ações engajadas no objetivo de construirmos ambientes mais receptivos e acolhedores a todas. Para isso, criamos a Liga de Mulheres Tabuleiristas, um espaço para todas nós que construímos o mundo dos jogos com criatividade, genialidade e paixão. Como JogaMana, pretendemos ampliar nossa produção de conteúdo, nosso público nos eventos e nossas parcerias, a fim de que nossas mensagens cheguem a mais gente e a mais cantos do Brasil. Conforme as portas forem se abrindo, poderemos expandir o nosso rol de atividades, contemplando as várias ramificações que vêm surgindo no mundo dos jogos e, é claro, as várias demandas de reflexão, compartilhamento de vivências e construção de projetos entre as mulheres.